
Storytelling:
a arte de contar histórias
Storytelling:
a arte de contar histórias
As histórias sempre estiveram presentes na trajetória da humanidade. Mas por que será elas causam tanto fascínio? Descubra nessa reportagem como o storytelling atua na música, na literatura, no cinema e no jogos digitais.
Anthony Teixeira
Jorge Pacheco
Guilherme Henriques
Larissa Vasconcelos
Rayssa Mambach
O storytelling dentro das canções
O storytelling dentro das canções
Playlist “storytelling”, música 1.
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Eduardo e Mônica fizeram natação, fotografia, teatro e artesanato e foram viajar
A Mônica explicava pro Eduardo coisas sobre o céu, a terra, a água e o ar
Ele aprendeu a beber, deixou o cabelo crescer e decidiu trabalhar
E ela se formou no mesmo mês em que ele passou no vestibular
E os dois comemoraram juntos e também brigaram juntos muitas vezes depois
E todo mundo diz que ele completa ela e vice-versa, que nem feijão com arroz.
A música cantada por Renato Russo, lançada em 1986 pelo Legião Urbana, é um exemplo de storytelling. Isto é, uma história contada através da música.
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O storytelling, segundo a doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Luana Viana - que já escreveu um artigo sobre o uso do Storytelling no Radiojornalismo Narrativo -, de maneira geral, é uma forma de estruturar e organizar a narrativa. Essa técnica pode ser veiculada por suportes impressos, pelo audiovisual e até de forma presencial, como passar uma mensagem através de uma palestra. Ou seja, é uma técnica que pode ser aplicada às mais diferentes formas de comunicação.
O storytelling pode ser usado tanto de forma ficcional, quanto de forma real. A ideia base dele é recorrer a sentimentos e emoções de quem está consumindo a narrativa. Então, é tocar aquela pessoa, para que ela viva em si ou consiga se imaginar na mesma situação que os personagens da narrativa
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Luana Viana
Contudo, tal técnica precisa ser adaptada conforme aparece em cada mídia.
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Como no caso das músicas, nas quais o storytelling é um recurso muito utilizado, mesmo que o seu uso não seja nomeado. O compositor pode não deixar claro que está compondo uma música em cima do storytelling, mas cria um personagem, dentro de um ambiente, passando uma mensagem através de um conflito ou desfecho, então, por consequência, está incluindo o storytelling na sua composição.
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Além de Eduardo e Mônica, boa parte das músicas do Legião Urbana foram construídas em cima de uma narrativa, formuladas através da arte de contar histórias. Passando não apenas uma mensagem, mas usando de casos reais ou fictícios para contar essa narrativa. Dessa forma, possuem um storytelling.
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O doutor em Composição Musical pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), João Francisco de Souza Corrêa, comenta sobre narrativas dentro da música e como elas podem se tornar atraentes para os consumidores de música.
Nós vamos ter vários elementos musicais que se cristalizaram ao longo dos anos como convenções que denotam certos elementos extramusicais. Então, nós vamos ter determinadas melodias, harmonias, ritmos e timbres que são componentes específicos da música que conseguem remeter a lugares, a épocas distantes, a povos específicos, também sensações como alegria, tristeza, melancolia. Então, a música, ela tem essa capacidade. Também tem a capacidade, por exemplo, de identificar, de caracterizar um personagem dentro de uma narrativa. Nós vamos ter várias possibilidades que podem ser aplicadas em uma composição, que auxiliam para que ela conte uma história de forma eficiente.
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Professor João Corrêa tocando a composição "III - Descaminhos - Suite palimpsestos"
Crédito: João Corrêa
João Francisco de Souza Corrêa
Ele acrescenta que composição é um processo; primeiro deve-se ter em mente que tipo de história aquela música vai contar, porque a partir disso se terá uma noção de quais elementos de caráter técnico deverão ser usados.
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Se uma música tem como objetivo contar uma história que se ambienta no futuro, o ideal é usar melodias relacionadas com tecnologia, como as eletroacústicas, mas, se for uma narrativa de ação, então a música precisa transmitir essa sensação de movimento, através de sons acelerados. Se for uma história mais calma, por exemplo, romântica, se sugere uma sonoridade mais estática, com um andamento mais lento. Porém, não é tão simples colocar uma narrativa dentro da música. Francisco Corrêa explica que um dos principais desafios para conseguir fazer isso é sintetizar a história e transformar essa síntese no sentimento principal da narrativa, afinal, o tempo médio de uma música é de 4 minutos.
Para conseguir fazer essa condensação, Corrêa explica que o compositor precisa de “não somente uma sensibilidade apurada para captar esses sentimentos, mas também todo um preparo técnico, todo um preparo ferramental que vai fazer com que ele consiga expressar as suas escolhas da melhor forma. Isso abrange várias questões que transbordam a escolha dos melhores materiais musicais para utilizar, mas também tem a ver com os melhores momentos para inserir a música, as relações com os elementos pré-existentes, no caso do audiovisual, as escolhas relacionadas a sincronia com os elementos da narrativa”. Corrêa também comenta sobre "valor agregado", estudado pelo teórico do cinema francês e compositor, Michel Chion, que é quando a música transmite algo que as imagens não conseguem. Por isso são usadas, por exemplo, no cinema.
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O doutor em Composição ainda explica que apenas determinar o tipo de história que será contada não basta, é necessário saber quais as ferramentas musicais serão utilizadas para atingir o objetivo da música. Contudo, a ausência da coerência entre sonoridade musical e o conteúdo da música não implica em canções sem storytelling. Há eventuais músicas que não têm essa harmonia, nas quais a história contada não combina com a melodia, o timbre de voz do cantor e os recursos sonoros e ainda assim podem ter as características do storytelling. O duo de Ohio, Twenty One Pilots, lança álbuns com um determinado conceito por trás que busca contar uma história. Entretanto, em determinados álbuns, as letras que normalmente falam de inseguranças, medos e frustrações do vocalista, Tyler Joseph, são "harmonizadas" em cima de técnicas sonoras que não remetem ao que a letra canta. Provavelmente, porque o álbum conta a história e não é apenas uma música que faz isso, o que traz essa necessidade de não manter todo um álbum com a mesma sonoridade. Muitos fãs brasileiros comentam que curtem a música dançando ou felizes, mas quando param para entender ou refletir sobre a letra sentem emoções contrárias à alegria.
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Entretanto, esse cuidado relativo à harmonia das músicas, às vezes, pode ser de suma importância. A música mais famosa da banda californiana Foster the People é cantada do ponto de vista de um jovem que sofre bullying e motivado por isso se vinga causando um massacre. Embora o vocalista da banda, Mark Foster, tenha defendido a canção como uma tentativa de incentivar os cuidados com a saúde mental, a música ainda é interpretada como um incentivo à violência e seu ritmo dançante também é um contraponto.
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Sobre narrativas contadas através da música, a consumidora de canções e estudante do 5° semestre em Música, da Unicamp, Bruna Caroline de Souza, acha interessante quando uma canção conta uma história, principalmente de fatos marcantes, de períodos históricos, como guerras. Ela, inclusive, gosta de interpretar uma música quando há uma história por trás da qual ela tem conhecimento.
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Bruna comenta sobre uma em específico: “Tem uma música que se chama 1812 Overture, se eu não me engano, mas que retrata uma guerra que ocorreu em 1812. É muito interessante a forma como ela retrata essa guerra que aconteceu. Inclusive, os próprios instrumentos fazem som de canhão de guerra. Para mim é mais interessante assim, que retrata do começo ao fim e dá para sentir essa emoção do que estava acontecendo no período”.
No entendimento de Bruna, músicas de qualquer gênero conseguem contar histórias:
Eu acho que qualquer gênero está propenso a contar uma história. Eu vejo isso muito no Rap. Tem muito Rap contando histórias. A gente tem (também) Eduardo e Mônica que é totalmente diferente de uma música clássica, por exemplo, mas conta uma história. Uma música clássica também pode contar uma história. Então eu não acho que não é só um estilo de música que pode fazer isso, eu acho que é muito geral. Assim, qualquer compositor que quiser escrever qualquer tipo de música consegue contar uma história através disso.
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Bruna Caroline de Souza
O storytelling criado dentro de uma música pode ser aprofundado em outros meios, essa expansão da narrativa é denominada "transmídia". Como o exemplo de Eduardo e Mônica, que se tornou um filme programado para ser lançado neste ano. Ou vários álbuns da cantora Beyoncé, nos quais as histórias das músicas se tornaram documentários, shows estruturados conforme as músicas. Tendo as canções como elemento unificador disso tudo.
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Ouça o nosso podcast sobre storytelling nas músicas:
Crédito: Anthony T.

Bruna Souza tem interesse em repercussão e explica que as histórias podem aparecer até mesmo com uso desses instrumentos
O storytelling aparece nas mais diferentes músicas e está presente em várias mídias e formas de comunicação. Como na literatura, uma das formas mais antigas de contar histórias.
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A arte de contar histórias na literatura
A arte de contar histórias na literatura
Capítulo 2
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Era uma vez a história da humanidade! Algo grandioso capaz de mudar as direções de toda uma espécie. Milhares, milhões, bilhões de anos se passaram e a vontade do homo sapiens de contar histórias ainda está presente no cerne dos humanos, em seu DNA.
Histórias são registradas para serem contadas, repassadas, relembradas. Antes da escrita, há 3.500 anos a.C., não havia essa possibilidade de forma integral. As histórias eram contadas oralmente ou representadas através de desenhos e nem todos os detalhes poderiam ser repassados. Até que a escrita surgiu e 1.500 anos mais tarde, a primeira obra literária foi escrita (Epopeia de Gilgamesh).
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Esses eventos, o desenvolvimento da escrita e da literatura, possibilitaram a contação de histórias através de obras narrativas e livros.
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Para o historiador Yuval Harari, a capacidade de criar ficções é a principal característica que distingue os seres humanos das demais espécies vivas. Então, nessa perspectiva, sem a capacidade de contar histórias, de inventar narrativas e criar imagens hipotéticas e imaginadas, a humanidade não seria a mesma. Ainda, segundo Harari, a capacidade de criar mitos, deuses, perigos além da compreensão humana é o que coloca as pessoas no mundo em que vivem hoje. Isto é, um cenário atravessado por narrativas e storytellings, ou seja, histórias contadas.
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A doutora em Literatura pela Universidade de São Paulo (USP), Débora Reis Tavares, explica um pouco sobre storytelling nos livros:
O Storytelling é bem antigo na literatura e significa contar histórias. Isso surge na tradição oral, ao organizar ações e eventos em torno de personagens e contar essa história para outras pessoas ouvirem.
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Crédito: Wikimedia.org

O storytelling no seu início
Débora Reis Tavares
No período Paleolítico, entre 2,7 milhões de anos até 10.000 anos atrás, quando os nômades viviam em cavernas e contavam histórias com pinturas nas paredes de pedras, os ancestrais usavam esse método para contar grandes acontecimentos, em volta de fogueiras, para as gerações mais novas, como as caçadas de mamutes, as enormes colheitas e os períodos de clima exótico. Sem esses registros, sem essa forma de contação de histórias reais, atualmente, não se poderia ter informações de como a vida era naquela época.
O escritor e historiador norte-americano, Dee Brown, representa algo parecido com esse momento de transmissão de cultura oral e narrativas em volta da fogueira no seu livro “Enterrem meu coração na curva do rio”. Embora o livro se passe no período de colonização norte-americano, por volta século XVIII e tenha seu foco praticamente exclusivo nos aborígenes de lá, a trama se calca bastante na forma como a cultura ancestral e ainda rudimentar tratava as grandes batalhas entres os indígenas e os colonizadores, além de mitificar os xamãs, líderes de tribos e grandes combatentes nativos como mitos e lendas da cultura nativo americana. Tudo isso fundamentado em relatos históricos e documentos oficiais da época. Dee Brown traz uma narrativa bastante verídica e emotiva e dá voz a uma cultura quase extinta e muito oprimida até hoje nos Estados Unidos.
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Ainda na área histórica, é interessante resgatar as epopeias gregas, também conhecidas como poesias épicas ou heroicas. Elas se tornaram um gênero literário composto por poemas de grande porte e com narrativas versadas sobre heróis da mitologia e mitos Gregos, quase sempre ambientadas em acontecimentos míticos ou históricos que se fundamentavam na cultura da época. Entre seus grandes escritores está Homero e suas duas maiores obras: Ilíada e Odisseia.
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Hoje o storytelling continua intrínseco na sociedade. Além da literatura, o teatro, cinema, vídeo game e até a música possuem um pé no storytelling. A escritora e mestre em Artes Visuais, Leila de Souza Teixeira, comenta que essa técnica, hoje em dia, é bastante visível no Marketing usado nas redes sociais. “Storytelling, para mim, sempre esteve relacionado aos textos que produzo para redes sociais, publicados junto com imagens (fotos ou vídeos). Na maioria são sobre literatura, mas nem sempre”. Sobre usar essa técnica e narrativas em suas publicações, ela complementa: “O storytelling demanda menos tempo, pois não desejo que ele tenha muitas camadas como minhas narrativas. As imagens formam algumas camadas, e o resto é aquilo que eu quero comunicar e pronto. São processos completamente diferentes para mim”. Nesse caso, Leila Teixeira desenvolve um storytelling envolvendo a literatura, mas também o Marketing, o qual usa essa técnica para atrair público e vender produtos. Já Débora Tavares vê o storytelling como uma forma de contar histórias em outras mídias, ela diferencia a narrativa do storytelling da seguinte forma:
Narrativa é a forma literária, geralmente em prosa, com registro escrito. Já o storytelling pode aparecer em outras formas também, é mais o ato de contar histórias também através da fala, e isso aparece no teatro, no audiovisual, nos podcasts, na TV. Se a gente fosse traduzir o termo storytelling ficaria algo muito próximo de ‘contação de história’, o que tem outra conotação no contexto brasileiro, mais voltado para o público infantil… Resumindo, no storytelling a gente tem pessoas fazendo algo em um determinado tempo e espaço e a maneira como essas ações são apresentadas muda completamente o jeito que a história é recebida.
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Débora Reis Tavares
Ela também traz o exemplo de George Orwell: “No caso do Orwell, existe mais uma questão com a narração em si, com uma preocupação de misturar conteúdo de crítica social com a forma. Então as personagens estão fazendo coisas específicas em um tempo e espaço que possuem um paralelo direto com as questões que ele queria comentar”. Nessa situação, Orwell traz elementos fictícios que fazem com o que o leitor consiga fazer um paralelo com a realidade da época e ainda pode ser comparado com a realidade atual.
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O storytelling é uma técnica que usa da narrativa, já a narrativa, nem sempre, usa o storytelling, que organiza de forma coesa a história. Usando personagens, ambientação, conflitos e uma mensagem, o storytelling pode contar histórias em diferentes formatos e meios de comunicação. Inclusive, mídias sociais e no próprio jornalismo, que, por vezes, usa de relatos e reconstituições de acontecimentos para contar histórias. Coisa que também é feita pelos filmes, no geral e séries, que reconstituem histórias parcialmente reais e transformam aquela narrativa em objeto de identificação com o público. Ou criam no imaginário do público essa identificação com uma história que sequer é real. O storytelling, frequentemente, é adaptado para o meio audiovisual, como o cinema.

A especialista Débora Tavares explica sobre os primórdios do storytelling
Crédito: Débora Tavares